O corpo e a natureza: uma experiência teórica prática na formação de professores

Segue uma ótima leitura! Artigo das professoras Marinilse Netto e Sonia Monego no XI Congresso Internacional de Estética e História da Arte - São Paulo (2018)

22/11/2018
Por: Márcia Moreno
Criação/interpretação dos alunos. Fonte: Bruna Natali da Rosa, 2018.

Resumo: Este trabalho apresenta uma atividade desenvolvida em uma disciplina de História da Arte com os alunos do curso de Artes Visuais. Envolveu as linguagens da fotografia, body-art e performance e teve como metodologia a abordagem triangular. Foram realizados estudos sobre a arte contemporânea, suas linguagens e leitura de imagens tendo como inspiração o vídeo ‘tribos das margens do rio Omo’ e fotografias de Hans Silvester.

Os alunos criaram produções visuais com ênfase na expressão corporal e uso de elementos naturais. A experiência teórico-prática permitiu estabelecer relações entre fazer arte e ensinar arte, gerando novas experiências na formação de professores.

Palavras-chave: Arte contemporânea; body art; fotografia; natureza; performance.

 

Introdução

O trabalho apresenta uma experiência teórico-prática realizada na disciplina de História da Arte Contemporânea, com uma turma de 4º período do curso de graduação em Artes Visuais – Licenciatura, localizado na cidade de Chapecó, estado de Santa Catarina.

A ementa da disciplina prevê em seus conteúdos questões referentes à produção artística relacionada às linguagens visuais contemporâneas, incluindo estudos sobre instalação, performance, happening, body art, vídeo-arte entre outras propostas multimidiáticas.

Com o objetivo de gerar experiências na formação de professores de Artes Visuais, teoricamente, a proposta tangencia o contexto da passagem da arte moderna para a arte contemporânea em estudos sobre seus principais conceitos, materiais e temas. Na sequência, os alunos foram incentivados a interpretar um contexto cultural ressignificando-o a partir de linguagens contemporâneas.

A atividade teve como eixo metodológico a Abordagem Triangular (BARBOSA, 2012) a qual propõe a contextualização teórica, a leitura de imagem e a produção artística. Partindo desta tríade foi proposta aos acadêmicos uma experimentação que envolveu a performance, a body art e a fotografia a partir das referências de vídeo das “Tribos da margem do rio Omo” que exibe fotografias de autoria do fotógrafo alemão Hans Silvester.

Entende-se a necessidade de incentivar os acadêmicos, futuros professores de artes visuais, para a compreensão da arte e seus sistemas, promovendo experiências desafiadoras, provocativas e críticas. Ao desenvolver um processo de ensino e aprendizagem que reflete questões contemporâneas é possível adentrar a realidade do campo artístico criando, expressando e gerando novas ideias e visões. Ao oferecer aos alunos as linguagens contemporâneas propõe-se incentivá-lo a passar do lugar do espectador para propositor.

Neste sentido, ao ser desafiado a propor novas abordagens, o professor precisa assumir o compromisso de construir metodologias condizentes, abandonando práticas descontextualizadas e repetidas. Ser propositor e participante, assumindo o risco dos questionamentos perante os ruídos que a arte contemporânea propõe.

 

Arte contemporânea, que bicho é esse?

Chip, saturação, sedução, niilismo, simulacro, hiper-real, digital, desreferencialização, estes são alguns termos usados para definir o período pós-moderno, que se intensifica na arte na segunda metade do século XX constituindo a arte contemporânea.

Mas que bicho é este que tem provocado inquietações e questionamentos? Por que a arte contemporânea provoca tanto estranhamento na sociedade? Por que as pessoas não a entendem?

Ao longo dos tempos a arte se modifica acompanhando as transformações sociais, culturais, políticas e econômicas que a sociedade tem passado. Na idade média a arte estava a serviço da igreja e servia para catequizar o povo com suas imagens repletas de simbolismos religiosos, apresentando um caráter didático da leitura do evangelho, voltado a um público que não sabia ler nem escrever. Já no renascimento com todas as modificações que ocorreram na sociedade como a valorização do homem e sua capacidade criadora e autônoma perante Deus e a natureza e o humanismo, a arte passa a incorporar no seu conteúdo outros elementos, temas e técnicas e a natureza passa a integrar a obra, agora com o domínio da perspectiva.

No estudo da anatomia, ainda de forma velada, o artista adquire certa liberdade na forma de representação do corpo e o conceito de beleza insere-se nos preceitos de proporção e harmonia, reflexos da perfeição de Deus.

No início do século XX a arte sofre influências da revolução industrial, a máquina a vapor, a fotografia a velocidade, a Primeira Guerra Mundial. Os artistas procuravam representar não apenas o mundo visível, mas trazer à tona a expressão interior da emoção e da sensibilidade. O artista ganha autonomia, rompe com padrões considerados clássicos da pintura, como cor, linha, forma, e não apenas cria, participa da obra interagindo com o público, agora mais participativo. “(...) a autocrítica é uma importante habilidade que os artistas e intelectuais contemporâneos precisam desenvolver”, cita Albuquerque (2016, p. 48).

Desta forma, a arte moderna se distancia do público, uma vez que para entendê-la se faz necessária a construção de novos conceitos, mediados pela vontade e interesse de compreensão. Importantes mudanças em relação aos suportes, materiais, aos espaços expositivos, que deixam de ser em museus e galerias, a interação com o público na rua, a relação da arte com outros elementos da cidade, são ampliadas por novas linguagens e temas. Em outro olhar, ao romper com a arte moderna, a arte contemporânea causa certa transgressão e perturbação do sistema e por vezes é censurada. Para Albuquerque (2016, p.55), “(...) a arte sempre vai encontrar seu espaço, mesmo que esse espaço venha a ser provisório”.

De acordo com Basbaum (2001, p.17), “(...) os trabalhos de arte do século XX radicalizaram a questão da produção de visualidade e estabeleceram novos parâmetros, deslocando o campo para além do olho natural e inventando a artificialidade do olhar”. As obras de arte tornam-se independentes do ato da visão e o conceito passa a ter destaque. Envolve todos os sentidos e tudo pode ser transformado em arte, o conceito, a atitude e a ideia passam a ser mais importantes que o ‘produto’ final.

A antiarte pós-moderna não quer representar (realismo), nem interpretar (modernismo), mas apresentar a vida diretamente em seus objetos. Pedaço do real dentro do real (veja as garrafas reais penduradas num quadro), não um discurso à parte, a antiarte é a desestetização e a desdefinição da arte.

Ela põe fim à "beleza", à "forma", ao valor "supremo e eterno" da arte (desestetização) e ataca a própria definição de arte ao abandonar o óleo, o bronze, o pedestal, a moldura, apelando para materiais não artísticos, do cotidiano, como plástico, latão, areia, cinza, papelão, fluorescente, banha, mel, cães e lebres, vivos ou mortos (desdefinição). (SANTOS, 1986, p.37).

Diante do exposto podemos dizer que a arte contemporânea apresenta nova mentalidade no mundo artístico, rompendo aspectos do mundo moderno, porém alguns valores defendidos se mantêm na contemporaneidade, como exemplo, as inovações, as invenções e experimentações artísticas.

Archer (2001, p. X), diz que a riqueza e a diversidade artística da contemporaneidade estão associadas às experiências realizadas nos últimos anos e na sequência afirma “(...) os artistas reexaminaram alguns dos gestos da vanguarda modernista realizados anteriormente, reinterpretando-os e desenvolvendo-os.” Como exemplo, podem-se citar os ready made de Marcel Duchamp que serviram e ainda servem de inspiração para os artistas contemporâneos. Cauquelin (2005, p.89) comenta “(...) o fenômeno Duchamp tem de interessante o fato de sua influência sobre a arte contemporânea crescer à medida que passam os anos. De um lado, o número de trabalhos que lhe são dedicados é cada vez mais importante; de outro ele é referencia, explícita ou não, de numerosos artistas atuais.” Ao questionar conceitos referentes à arte contemporânea Cauquelin (2005, p.12) fala em estabelecer critérios, distinções, contudo, diz a autora:

(...) esses critérios não podem ser buscados apenas nos conteúdos das obras, em suas formas, suas composições, no emprego deste ou daquele material, também não no fato de pertencerem a este ou aquele movimento dito ou não de vanguarda. (...) de fato, os trabalhos que tentam justificar as obras de artistas contemporâneos são obrigados a buscar o que poderia torna-los legíveis fora da esfera artística, seja em temas culturais recolhidos em registros literários e filosóficos – desconstrução, simulação, vazio, ruínas, resíduos e recuperação -, seja ainda em uma sucessão temporal – classificada de neo, pré, pós ou translógica, de evolução bem difícil de manter.

A partir das questões já pontuadas neste trabalho é possível dizer que, por suas características é comum que estudos sobre a arte contemporânea não sejam contemplados nos currículos escolares. Pesquisas e observações realizadas em escolas, amplamente divulgadas, mostram que há ênfase no ensino das artes de temas clássicos e modernistas. Tal situação gera desconhecimento e preconceito, criando um abismo entre obra de arte e público. “As obras, e se vê aí o paradoxo mal compreendido, são cada vez mais numerosas; os museus, as galerias crescem e se multiplicam, e a arte nunca esteve tão afastada do público”, cita Cauquelin (2005, p.13). Vale dizer ainda que em se tratando de arte contemporânea de acordo com Albuquerque (2016, p.59), “(...). A censura e a transgressão estão no cerne do que a arte representa no cotidiano.”

 

Na teoria e prática – desmistificando a arte contemporânea

Um dos grandes desafios de ministrar disciplinas de história da arte é criar experiências que tenham significado para os alunos. Com a questão da arte contemporânea é ainda mais importante propor atividades que os desafiem. Vale relembrar Paulo Freire (1996) e sua visão de que “(...) educar é impregnar de sentido o que fizemos a cada dia”. Pensando nisso, muitas foram as iniciativas e tentativas de conciliar a teoria com a prática em vivências que geraram interação, pesquisas e novas visões sobre as potencialidades da arte contemporânea.

Conforme relatado anteriormente, ensinar as linguagens contemporâneas exige a desconstrução de conceitos já impregnados na arte, rompendo a persistência de muitos professores de repetir conteúdos e usar métodos sem dar sentido ao que se estuda. Archer (2001, p.) diz que “(...) de início parece que, quanto mais olhamos, menos certeza podemos ter quanto aquilo que, afinal, permite que as obras sejam qualificadas como “arte”, pelo menos de um ponto de vista tradicional”. Ainda de acordo com o autor, a arte recente utiliza materiais considerados tradicionais como tinta, metal e pedra, mas inclui elementos como ar, luz, som, palavras, pessoas, comida, entre outros.

Neste sentido foi proposto aos alunos, após estudos e reflexões sobre os principais conceitos que regem a arte contemporânea, que elaborassem uma criação/interpretação usando a performance, body-art e a fotografia tendo como inspiração o vídeo “Tribos do rio Olmo” e fotografias de Hans Silvester que usou a mesma referência para sua produção.

Os povos que vivem no vale do Rio Omo, fronteira da Etiópia, Quênia e atual Sudão do Sul usam elementos naturais compondo um visual estético próprio, que segundo sua cultura relaciona-se às dimensões estética, física e espiritual em uma relação direta entre corpo e natureza. Na formação do vale há uma fenda vulcânica rica em pigmentos com uma grande variação de cores e são usados em uma diversidade de composições pictóricas.

No contexto da pintura corporal visualizada no vídeo e nas fotografias e ao estudar a body art buscou-se o conceito de corpo, o ‘traje sagrado’, citado por Ramos (2001, p.21) “(...). É o primeiro e o último traje de uma pessoa: é nele que se entra na vida e é com ele que se parte dela; deve ser tratado com honra, e com alegria e medo também. Mas sempre com graça”. Ainda de acordo com Ramos (2001, p.117), “o valor está nele – corpo/obra –e não na riqueza que este corpo possa propiciar. O que mais importa não é o olhar contemplativo, mas a percepção sensorial de cada um e a participação coletiva”.

Os alunos se reuniram em pequenos grupos e partiram para a coleta de materiais orgânicos no entorno da universidade. A produção foi realizada ao ar livre com o uso de galhos, flores, folhas, cipós e terra para a produção das tintas usadas na body art. Foram usados outros tipos de corantes e pigmentos misturados com terra e durante a produção também foram realizadas outras atividades como produção de um texto sobre a experiência e registros fotográficos do processo.

Após a produção e caracterização os alunos deram início às performances incorporando a gestualidade das imagens referência. Juntas, as linguagens demonstram seu potencial para a criação e a experimentação estética. Dempsey (2010, p.225) diz que “na natureza indefinível da arte performática é que reside sua força” e que “(...) além de explorar questões relevantes para o universo da arte, os artistas performáticos vem criando uma obra que se referencia a questões sociológicas mais amplas de nossa sociedade”. (DEMPSEY, 2010, p.223). Com os registros foi possível perceber a grande diversidade, tanto em material quanto em expressão e poética conforme pode ser observado nas figuras abaixo.

As criações/interpretações mostram modos expressivos de riqueza estética e as imagens produzidas não falam apenas sobre cultura ou beleza visual, mas registram o que foi construído, a experiência artística vivenciada e o potencial das linguagens artísticas. Os alunos percebem que para entender o contexto e as propostas contemporâneas artísticas é preciso conhecer seus referenciais, conceitos, códigos e significados. Entendem que a questão do belo na arte se dissipa no contemporâneo e a beleza pode estar na intenção do gesto, da experimentação, da criação ou do processo. Ao experimentar o aluno se desafia a uma elaboração de sentidos e neste processo cria novos meios de interagir com a arte contemporânea.

A atividade propõe a reflexão de que a arte contemporânea necessita de interação, pois a obra de arte só se completa diante da participação, da vivência e experimentação, ainda, propõe o trabalho em grupo e a construção coletiva de significados.

 

Conclusão

Este artigo expõe uma proposta de ensino da arte como contribuição aos professores de Arte/Educação que utiliza a abordagem triangular e que explora as linguagens contemporâneas. Contribui para lançar um novo olhar aos preceitos da arte contemporânea e mostrar suas múltiplas possibilidades de ensino e de aprendizagem. Ao experimentar a proposição em seu curso de formação, o aluno adquire repertórios para sua prática em sala de aula aventurando-se em novos temas, linguagens e sentidos.

Por fim, reitera-se a importância do fazer artístico, da apreciação e da leitura de imagens na construção de novos referenciais no ensinar e no aprender arte ressaltando a necessidade de repensar que tipos de arte e de ensino devem ser propostos na formação de futuros professores de arte e nas escolas onde atuarão.


Referências:

ALBUQUERQUE, Fellipe E.T. Censura e transgressão na arte contemporânea. Palíndromo, v.8, n. 15, p.42-57, 2016.

ARCHER, Michael. Arte contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BARBOSA, Ana M. Abordagem triangular no ensino das artes e culturas visuais. São Paulo: Cortez, 2012.

BASBAUM, Ricardo. Arte contemporânea brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.

CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 168 p.

DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas e movimentos: guia enciclopédico da arte moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

FREIRE, Paulo. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. Ed. Paz e Terra, 1996.

RAMOS, Célia M. A. Teorias da tatuagem: corpo tatuado uma análise da loja Stoppa Tattoo da Pedra. Florianópolis: UDESC, 2001.

SANTOS, Jair F. dos. O que é Pós-moderno. São Paulo: Brasiliense,1986.

 

Vídeo e site:

Tribo Rio Omo- África. Disponível:

https://www.youtube.com/watch?v=e8zCRgwa4vA. Acesso em junho 2018.

Peoples of the Omo Valley by Hans Silvester | The Gorgeous Daily. Disponível:

https://www.thegorgeousdaily.com/peoples-of-the-omo-valley-by-hans-silvester/. Acesso em junho 2018.


 

 

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